A espiral e o labirinto

“nascer, viver e morrer é mudar de formas.” (Diderot)

Subjazem no trabalho de José Patrício, estruturas numéricas que alicerçam sua visualidade. Por vezes, as composições cromáticas são ditadas por articulações dos números dos dominós ou dos dados, crescentes ou decrescentes, por exemplo. Em outros momentos, o resultado plástico é gerado por associações de elementos iguais e diferentes, como botões e quebra-cabeça. Para os conhecedores de sua poética, estas são afirmações amplamente conhecidas. O apanhado de obras apresentado nesta exposição busca expandir esses pressupostos e apresentar ramificações recentes da pesquisa de Patrício. Entram em evidência as lógicas da espiral e do labirinto, ou seja, a tensão entre um percurso planejado e ascendente, e um caminho de imprevisibilidade e de aleatoriedade. As Vanitas (vaidades), expressões artísticas que ressaltam a finitude do ser humano, aglutinam tematicamente o primeiro conjunto de obras. Quando as pinturas vanitas se popularizaram, no século XVII, o mundo europeu passava pelo estremecimento de certezas detonado parcialmente pela ascensão do Protestantismo. Os quadros apresentavam elementos que advertiam severamente sobre a brevidade da vida e a vaidade das riquezas e dos luxos terrenos, sendo quase que constante a presença da caveira ou mesmo do esqueleto inteiro. José Patrício transpõe essa discussão para a atualidade, ao trabalhar a imagem da caveira e frases que atentam para a perecibilidade humana. Uma fotografia de um crânio feita numa parede de Veneza é trabalhada digitalmente até se transformar numa composição modular em tons de cinza, branco e preto. Trata-se de um desdobramento de uma sequência de obras produzidas pelo artista com um quebra-cabeça de esqueleto, mas ao mesmo tempo parece apontar para um extravasamento de sua pesquisa sobre possibilidades técnicas de exploração da lógica das combinações. Acompanham Vanitas Venezia, Azulejo e Azulejo II, fotografias também com estruturação modular feitas no Convento de Vanitas – espiral e labirinto, 2012 — peças de quebra-cabeças de plástico sobre madeira / plastic puzzle pieces on wood — 181 x 181 cm São Francisco, na Paraíba. O desgaste impingido pelo tempo gera padrões aleatórios de desenho, cabendo ao artista a possibilidade de apenas testemunhar e registrar este achado. Um dos entendimentos sobre o labirinto afirma que sua principal função na Grécia Antiga não era a simples busca pela saída, ou mesmo ser uma prisão, mas ser principalmente um ambiente de experimentação, sendo, portanto, mais importante o caminho do que o desfecho, a saída. Estamos num ambiente livre da tirania do projeto. Trata-se, assim sendo, de uma exceção que confirma a regra.

Vanitas QR code encontram-se numa espécie de transição. Tematizam a mortalidade, mas sua forma de materialização obedece à lógica da codificação. O visitante pode usar seu celular para decodificar o que dizem as composições feitas com peças de quebracabeças. A estrutura é dada não por números, mas por letras. O QR code é um código de barras em 2-D que permite armazenar uma significativa quantidade de caracteres e vem sendo usado em promoções, anúncios e jogos. A obsolescência e a finitude encontram-se não apenas no ser humano, mas no próprio aparelho usado para a decodificação, já que o fundamento do capitalismo avançado é a troca sistemática e vertiginosa das mercadorias por outras mais recentes e avançadas. O terceiro momento da exposição coloca-nos numa zona de acolhimento, pois somos rodeados de trabalhos que evocam controle e ritmicidade. Vanitas espiral e labirinto desconstrói a lógica do jogo do quebra-cabeça. O artista assume as tonalidades matizadas das peças que vêm do fabricante e reorganiza as partes para formar um novo todo. O mesmo quebra-cabeça de caveira virado para sua parte impoluta transforma-se em módulos abstratos, afeitos à ordenação. Parece que estamos fadados a desejar que a vida seja espiral, constante e progressiva, mas ela não passa de um grande labirinto.

Este texto foi originalmente escrito como apresentação da exposição individual de José Patrício A espiral e o labirinto, na Galeria Nara Roesler, São Paulo, em maio de 2012.

 

The spiral and the labyrinth

“To be born, to live and to die is merely to change forms.“ Diderot

Jose Patricio’s work is underlain by numerical structures that comprise the foundation for its visuality. His chromatic compositions are at times dictated by increasing or decreasing domino or dice number combinations, for instance. At other times, the visual outcome is generated via associations of equal and different elements such as buttons and puzzles. For those acquainted with his poetics, these are widely known affirmations. The works in this exhibition set out to expand on these assumptions and introduce recent ramifications of Patricio’s research. The logic of spirals and labyrinths becomes evident, i.e. the tension between an upward trajectory that is planned out and a path of unpredictability and randomness. The Vanitas (vanities), artistic expressions that emphasize the finiteness of the human being, provide a common theme to the first set of works. When vanitas paintings first became popular in the 17th century, the certainties of the European world were being partially shaken by the rise of Protestantism. The pictures included elements which were serious warnings on the brevity of life and the vanity of earthly riches and luxuries, with the near-ubiquitous skull or even whole skeletons. José Patricio transposes this debate into present days by using the image of the skull and sentences that allude to human perishability. A photograph of a skull on a wall in Venice is digitally processed until it becomes a modular composition in shades of grey, white and black. It is the continuation of a sequence of works created by the artist using a skeleton puzzle, but at once it seems to point to an overflowing of his research on the technical possibilities of exploring the logic of combinations. The Vanitas Venezia, Azulejo and Azulejo II pieces are accompanied by modular-structured photographs taken at the São Francisco (St. Francis) Convent in the Brazilian state of Paraíba. The wear of time creates random drawing patterns, and all that is left for the artist to do is to witness and record these findings. One of the understandings of the labyrinth is that its main function in Ancient Greece was not simply for its exit to be sought, nor was it meant to be a prison, but rather that it was mostly an environment for experimentation, and therefore the process mattered more than did the outcome, i.e. the exiting of it. We find ourselves in an environment which is free from the tyranny of project. It is, therefore, an exception which confirms the rule.

Vanitas qr code lies at a transition of sorts. Its theme is mortality, but its materialization conforms to the logic of codification. Visitors are free to use their mobiles in order to decode the meaning of the compositions made from puzzle pieces. The framework is provided not by numbers, but letters. Qr code is a 2D bar code that enables a significant number of characters to be stored, and it is being used in promotions, advertisement and games. The obsoleteness and finiteness are found not only in human beings, but also in the decoding device itself, as the foundation of advanced capitalism is the systematic and vertiginous exchange of goods for other more recent and advanced ones. The third moment of the exhibition has us in a welcoming zone, because we are surrounded with works that evoke control and rhythmicity. Vanitas spiral and labyrinth deconstructs the logic of puzzle games. The artist takes on the nuanced tones of the pieces supplied by the manufacturer and reorganizes them to create a new whole. Turned on its blank side, the same skull puzzle turns into abstract, order-prone modules. It seems as though we are condemned to wish life to be a spiral, steady and progressive, but it is nothing but a large labyrinth.

This text was originally written as a presentation of the individual exhibition of José Patrício The spiral and the labyrinth, at the Nara Roesler Gallery, São Paulo, in May 2012.

Jogo Cor

O movimento sempre foi o motor da obra de José Patrício. Trata-se, no entanto, de uma engrenagem subterrânea, não muito acintosa. A vontade construtiva é um dado relevante em seu trabalho e é o que mais se pronuncia. Sempre regrado por seqüências numéricas ou mesmo guiado pelas conjunções de cores e símbolos, o trabalho chama atenção pelo pictorialismo e pela engenhosidade da ocupação do espaço em suas instalações.

Talvez Jogo Cor tenha causado espanto àqueles que acompanhavam o trabalho de Patrício. Ao invés de painéis e instalações que se projetam pelo chão para contemplação, uma sala de jogos, penumbra, meia parede na cor verde bandeira, mesas com cores primárias e dominós sendo jogados pelos visitantes. Comissionado pelo Observatório Cultural Torre Malakoff, em 2003, dentro de um projeto de exposições de projetos inéditos e desafiadores para artistas já experientes, o trabalho foi mostrado primeiramente em março de 2005, concomitantemente com uma mostra do artista paraibano Martinho Patrício. Esta foi a primeira oportunidade de ambos os Patrícios de apresentarem projetos participativos que destoavam do padrão de fruição e de operacionalização de seus trabalhos, mas que significavam um claro desdobramento de todo o manancial poético e lúdico construído por cada um.

Jogo Cor exacerba aspectos da investigação criativa de José Patrício: o movimento, o cromatismo e a utilização de um jogo popular como princípio fundamental. Apesar de não ter sido inspirada diretamente na obra de Hélio Oiticica Sala de Sinuca (1966), esta é apontada pelo artista como uma referência possível, afinal as cores tomam o espaço e o trabalho acontece pela ação do público, em que o espectador vira participante, jogador, como na instalação do artista carioca. José Patrício abre mão de suas combinações e de suas regras rigidamente seguidas para abarcar o acaso e a espontaneidade do público, possibilitando novas potencialidades para seu percurso artístico.

Este texto foi originalmente escrito como apresentação das exposições individuais de José Patrício Jogo Cor Zero Jogo , no Observatório Cultural Torre Malakoff, Recife, em março de 2005.

Jogo Cor ¹

Movement has always been the engine of José Patrício’s work. Its gears, however, are underground: unobtrusive. The constructive drive is a major feature of his work, in fact, what is most pronounced. Always governed by numerical sequences or even guided by the groupings of colours and symbols, these installations draw attention for their pictorialism and ingenious use of space.

Perhaps Jogo Cor has come as a surprise to followers of Patrício’s productions. Instead of panels and installations that protrude from the floor for contemplation, here we have a games-room, penumbra, a half-wall in flag green, tables with primary colours and domino games being played by visitors. Commissioned by the Torre Malakoff Cultural Observatory in 2003, as part of an exhibition scheme of new and challenging projects for already experienced artists, the work was first shown in March 2005, concomitantly with an exhibition by the artist from Paraíba, Martinho Patrício. This was the first opportunity for both Patricios to present participatory projects that differed from the pattern of fruition and operationalization of their work, but which meant a clear unfolding of the entire poetic and playful repertoire each of them had compiled.

Jogo Cor exacerbates aspects of José Patrício’s creative investigation: movement, chromaticism and the use of a popular game as a fundamental principle. Although not directly inspired by the work of Hélio Oiticica, Sala de Sinuca (Pool Room) (1966), this is pointed out by the artist as a possible reference; after all, the colours take over the space and the work is brought to life through the intervention of the public, in which the spectator becomes a participant, player, as is the case in the installation by the artist from Rio de Janeiro. José Patrício gives up his combinations and his rigidly followed rules to embrace the randomness and spontaneity of the public, allowing new potential for his artistic path.

This text was originally written as a presentation of the individual exhibitions of José Patrício Jogo Cor Zero Jogo, at the Malakoff Cultural Observatory, Recife, in March 2005.

[1]TN: literally ‘I throw colour’, cf jogo (de) cor : ‘colour set’