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Infinitos outros

2023

Galeria Nara Roesler, Rio de Janeiro, Brasil

Curadoria: Ariana Nuala

Pista de um jogo

 

Entre jogadores existe sempre uma conexão a ser estabelecida. Se, por exemplo,  temos um jogo de dominó entre duas ou mais pessoas, há uma tensão criada pelos olhares ou gestos escorregadios para confundir o oponente,  que altera o jogo de maneira que este nunca poderá ser repetido. A mimese de um jogo de dominó, nunca se tornará um jogo de dominó, e sim, será uma imitação daquilo que foi feito, uma ação que poderá incluir surpresas, mas que não terá o desejo que faz o jogo, denominado dominó, existir.
Sendo assim, poderá ser um jogo de cena, porém fora das regras que se fazem necessárias para que um jogo de dominó de fato aconteça. Sua maneira singular e irrepetível, experiência sentida apenas por aqueles que jogam, é parte de um processo que garante a unicidade de cada partida que, apesar de semelhante a outras, continuará sendo um acontecimento único que foi composto com os gestos daqueles que a jogaram.
Gosto de pensar o dominó  – elemento ausente aqui nesta exposição mas muito comum na prática artística de José Patrício – para pensarmos no processo de criação das obras presentes neste espaço. Há uma repetição que percorre os trabalhos aqui preenchidos de diversos botões ou selos postais: um espaço é desenhado no meio de cada obra e a partir dele inicia-se uma espiral. Esta regra permite, entre outras coisas,  que várias mãos possam dar continuidade a brincadeira criada pelo artista.
A espiral segue se repetindo até encontrar o limite do quadro e talvez continue a saltar nos olhos de quem vê; pois o ritmo já não pertence ao controle do artista, mas sim ao próprio tempo que ocasiona a dança do olhar,  percorrendo as obras de dentro para fora e de fora para dentro.

Como o jogo de dominó que tem uma regra estabelecida, mas que em cada território sofre alterações em sua jogada, seja na Índia, na China ou no Brasil, ou entre casas vizinhas de uma mesma cidade, Patrício nos revela sua lógica para se iniciar um jogo. Sua jogada é feita apenas entre ele e as peças que coleciona, sejam elas botões, selos postais, dados ou dominós, e com seu próprio tabuleiro, a tela, o artista compõe constelações a partir de caminhos ainda não percorridos.
Como um jogador, Patrício requer de um objetivo. Entretanto, esta finalidade não perpassa a noção de ganho – ele nos diz confiante: não tem erro aqui, tudo dá certo. –  mesmo sem saber o que acontecerá no fim ao jogar com suas peças, é parte do acontecimento se surpreender com o resultado. Ao contrário de um projecionista que repete incansáveis vezes, entre cálculos, desenhos para esboçar algo a ser erigido, o artista em questão não projeta o reflexo de sua obra, mas deixa que os elementos também possam engendrar suas próprias linhas, possibilitando leituras múltiplas para quem se aproxima da composição final.

A leitura de um jogo é algo fundamental para a compreensão de seu funcionamento, os códigos se apresentam e são atrelados à intuição, esta que imprime a gestualidade de cada jogador, considerando estratégias e escolhas.  Patrício cria sua gramática pronta para ser lida, neste caso, a leitura pode ser feita durante o jogo, mas também após, independente da experimentação de sua jogabilidade. A leitura pode reagir de diversas formas, entre elas espontânea, analítica e poética, tornando-se também a expressão do jogo e modificando-se a cada leitor.

Este feito, o de ler, cabe aqui aos jogos, sejam futebol, baralho, xadrez ou ao jogo aqui criado por José Patrício, e porque não as estrelas, e logo a qualquer imagem ou obra de arte. Há uma memória importante, as leituras não se fixam, elas não devem ser tomadas como explicação e também não como universais. Portanto, um bom jogador seria aquele que sabe mais de uma estratégia para seu propósito, logo anulando a possibilidade de apenas uma leitura.
Na sua série Progressão Cinética, vemos diferentes arranjos entre agrupamentos de botões que se aglutinam ou se espalham numa superfície plana e quadrada, sempre mantendo o jogo espiralado, os botões contraem e expandem nosso olhar à medida da mudança produzida pela escolha de organização feita pelo artista. Logo, são trilhadas camadas de uma mesma jogabilidade aprofundando “os níveis” deste processo e as infinitas interpretações.
Diferentemente do arranjo executado em Progressão Cinética, gostaria de observar  uma série que acentua o quantitativo e as variações de peças de botões organizadas cromaticamente, seguindo a mesma ordenação da série anterior, mas que em seus contornos, texturas e métricas, se distinguem completamente.
Esta série mostra o indício do interesse principal de Patrício, ou melhor, citando a escritora afro-americana Octavia Butler, da sua obsessão positiva. Em Afinidades Cromáticas, os botões nos dão pistas de sua origem, seu processo de feitura e comercialização. As variações estéticas dos botões podem nos remeter aos grandes mercados públicos, feiras-livres ou vuco-vuco, como chamamos no Recife, cidade onde reside o artista. Há uma organização subjetiva no caos em que se encontram as feiras, espaços de barulho e agilidade, arrematados com cores vibrantes frente ao sol que parece incendiar as cabeças dos passantes.
Neste ambiente de pulsão criativa, onde os comércios são preenchidos por objetos coloridos e inusitados, é possível que a imaginação sobreponha outros esquemas de imagem sobre a própria feira, uma caminhada em um lugar com tanto estímulo, propondo ao artista um jogo de mundo. Assim, Patrício ia ao vuco-vuco coletar as peças que formariam seus jogos, num movimento tão cotidiano, como quando colecionava selos postais quando criança, o artista nos revela, assim como Butler, que a obsessão positiva é como uma mirada que não pode ser perdida, pode ser perigosa, mas é inventiva. Um jogo a ser jogado e que não deve ser interrompido pela angústia causada pela tensão, algo que é usado com cuidado e estratégia para se conseguir ir em frente.