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Precisão e Acaso

2018

Museu Nacional da República, Brasília, Distrito Federal, Brasil

Curadoria: Felipe Scovino

A realização dessa exposição passa pela noção de antologia. Prefiro utilizar esse conceito ao de retrospectiva. Ademais, a ideia de antologia está intimamente ligada à poesia, à criação de imagens que não cessam de acontecer, impulsionadas pelas mais variadas fontes, memórias e histórias.

Estão em exposição, majoritariamente, os últimos 7 anos de produção de José Patrício, além de obras do início de sua carreira nunca antes apresentadas. A curadoria quer que o público conheça e reflita sobre as fases mais recentes da produção do artista; o seu interesse por novos materiais; as pesquisas cromáticas e cinéticas que vem investigando; a forma como o seu trabalho amplia o termo construtivo; o caráter lúdico e participativo desenvolvido em suas pesquisas; e, finalmente, uma coleção de materiais que são cada vez mais difíceis de serem encontrados, e a maneira como esse arquivo cria uma relação estreita com a noção de cultura.

Sobre a organização das obras no espaço do Museu do Estado de Pernambuco, preferi privilegiar uma escolha que se deu por afinidades eletivas em vez de privilegiar um recorte curatorial que obedecesse cronologicamente à produção ou ainda que aproximasse as obras por fases ou elementos que as compõem. Embaralhadas — fases de produção e temporalidades —, essas afinidades eletivas se deram mediante uma aproximação por tonalidades, formas geométricas e a maneira como o artista empregou materiais que ajudaram a construir o seu repertório de investigação. Neste último caso, percebe-se a maneira, por exemplo, em como diversificou o uso dos dominós, seja utilizando as cores tradicionais do jogo (preto e branco), seja pintando-os com cores distintas a essas ou ainda usando o seu avesso para compor as suas criações[1]. Dessa forma, a curadoria demonstra a coerência do trabalho do artista ao longo de sua trajetória, tornando claras as similitudes entre suas fases e experiências.

A obra de José Patrício vai além de uma investigação sobre o lugar das linguagens construtivas na contemporaneidade. Sabemos que as vertentes do abstracionismo, a geométrica e a informal, aportam com maior densidade nos anos 1950 no País e foram responsáveis por uma tomada de posição de vanguarda nas artes visuais, no design, na arquitetura, na moda e em tantas outras práticas artísticas e culturais. A chegada e o amadurecimento dessas poéticas estavam conectados a um amplo painel que se refletia no plano desenvolvimentista de Juscelino Kubitschek, na industrialização do País, na arquitetura moderna e na institucionalização da arte — vide a criação de museus de arte e a inauguração da Bienal de São Paulo. As linguagens construtivas e, mais especialmente, a forma como foram reinventadas constituíram a base da passagem da modernidade à contemporaneidade no cenário das artes visuais brasileiras. Por exemplo, Lygia Clark e Amilcar de Castro, cada um a seu modo, tornaram o metal mole, destituíram de peso uma matéria ligada à indústria e à força e permitiram a participação do espectador no processo de criação da obra de arte.

Patrício segue esse caminho de invenção e coerência da história das linguagens construtivas no Brasil e contribui, já na contemporaneidade, no terreno do alargamento sobre o conceito de construtivo nas artes. Seu trabalho possui precisão, regras e modos muito próprios de construção, como podemos observar nos jogos associativos que realiza com os elementos do qual faz uso. Sem dúvida, há pensamento racional, ordenamento e constituição de uma regra que deve ser seguida até o limite ou o fim das peças escolhidas. Contudo, o acaso também se faz presente. Esses dois conceitos — Precisão e Acaso — não são antagônicos em sua obra. Pelo contrário, complementam-se e necessitam um do outro e são a chave para compreendermos a sua grande contribuição. É possível observar a precisão e a escolha através da vizinhança cromática, numérica ou material dos elementos que fazem parte de suas obras. Invariavelmente, o núcleo central ou a linha que delimita o perímetro do trabalho são os registros do início ou do fim da forma construída, pois o movimento de rotação se dá concomitantemente nos sentidos centrípeto e centrífugo. Percebam, portanto, que, por mais que a regra seja dada, há um composto de acaso. Como afirma Paulo Herkenhoff ao comentar as séries Ars combinatoria e Expansão múltipla (mas que pode ser ampliado para o restante da trajetória artística):

 

Sua lógica absoluta jaz à mercê do acidente que reconstitua o caos e nova hipótese lógica. Um acidente poderia ser visto como o duelo entre o axioma e o chute. O chute como o caos sem lei pode colocar o dominó à deriva, o número em estado de irracionalidade à espera por modelos matemáticos do caos que enfrentem a incerteza[2].

Podemos perceber o acaso também pelo fato de que Patrício nunca realiza um esboço ou maquete de suas obras. Portanto, não há um projeto que antecipe o desenho ou a forma final delas.

Outra forma de aparição do acaso é a qualidade cinética dessas obras. O acúmulo, a ordem e o excesso provocam um distúrbio. Somos “sequestrados” pelo trabalho, pois, ao querer desvendar a sua organização lógica, somos duplamente surpreendidos: por uma vibração óptica das intermitentes figuras virtuais e pela larga quantidade de pequenos objetos acumulados que deixam o nosso olhar à deriva. O foco não está mais no centro, mas perdido, tentando dar conta das várias possibilidades que a obra oferece para decifrarmos sua lógica interna. E, dependendo da perspectiva que adotamos em relação a ela, somos surpreendidos com novas qualidades cromáticas e estruturais. Na série Afinidades cromáticas, os planos não se fixam, interagem, propondo um jogo de alternativas possíveis. A vista não repousa, ativada pelas ambíguas relações criadas pelos botões, que formam figuras intercambiáveis. Na física do quadro, as linhas de força estão identificadas com o movimento. Ora apontam uma mesma direção, ora se orientam em sentido divergente. Refletindo sobre a capacidade de criação incessante de formas e o conceito de precisão e acaso, a série Imago mundi é um excelente estudo de caso. Essa série utiliza 279 jogos de dominó para formar um quadrado perfeito. É sempre um conjunto igual, a mesma quantidade de peças (28 conjuntos com 279 peças iguais, cada um). A cada vez, as peças são montadas de forma diferente, e a obra pode apresentar uma multiplicidade de configurações[3]. Como afirma o artista, “A única regra fixa é fazer as conexões entre as peças como no jogo de dominó, de forma contínua, seguindo o movimento da espiral”[4]. As múltiplas interrelações que nascem dessa regra sugerem uma paisagem em movimento, espiralada. Os dominós delineiam um “prolongamento” e a ideia de um ato contínuo que extrapola os limites da moldura. Tudo é relativo e tende à transitoriedade. As linhas que traçam esse contorno de paisagem são elementos geradores de formas e afirmam a presença concomitante de dois sentidos que engendram força e dinâmica à obra. Essa série possui um tempo de percurso e expansão no campo visual muito próprio que gera, por sua vez, uma intensidade de vibração.

O trabalho se faz também pela qualidade em ser dinâmico, veloz e mutante. A proximidade com o cinetismo e a op art é clara. Artistas como Almir Mavignier, Lothar Charoux, Ubi Bava, Waldemar Cordeiro, no plano nacional, e Bridget Riley, Soto e Vasarely, no contexto internacional, são referências para Patrício. Contudo, o formato de suas obras e a proximidade entre as pesquisas cinéticas criam diálogos mais fecundos com Josef Albers e sua icônica série Homenagem ao quadrado. Como as de Albers, suas obras também se organizam por formas quadradas. Patrício faz quadriláteros fragmentados por pontos de cor (transformando o material empregado, seja ele qual for, numa retícula) que compõem variações tonais ou de relevo. A percepção apreende posições relativas alternadas, oscilando entre avançar e recuar, estar adiante e estar atrás, estar acima e estar abaixo. É importante, portanto, o espectador se deslocar diante da obra, adotar perspectivas múltiplas para que possa experimentar as distintas qualidades cinéticas que ela problematiza. A superfície é dominada progressivamente por estruturas de pontos coloridos, cuja plasticidade revela uma nova situação de mistura óptica de luz e cor constantemente mutável, vibrando intensamente o trabalho.

Outro artista que cria um enlace com a pesquisa de Patrício é Palatnik e, mais substancialmente, a sua propriedade inventiva em associar pesquisa cinética, arte e artesania. Destaco os Relevos progressivos (realizada a partir dos anos 1960) e a forma em como transmite qualidades ilusórias ao material escolhido para compor a obra. Nessa série, o sequenciamento dos cortes na superfície do material — cartão, metal ou madeira — cria camadas ou ondas que variam dependendo da profundidade e localização do corte, constituindo sua própria dinâmica. O uso do papel-cartão é algo surpreendente porque a produção de relevos empregada pelo artista leva à execução de ritmos e sinuosidades de grande impacto visual. Frederico Morais alerta que Palatnik, “[…] ao invés de usar a superfície do papel, como qualquer desenhista, superpõe várias folhas, criando um aglomerado, e, em seguida, cortando-as pelo topo […] Seus relevos, em diferentes profundidades, resultam em estruturas óticas, em cujos interstícios a luz passa, perpassa, criando áreas mais ou menos iluminadas”[5]. Palatnik opera com o gesto mínimo que desloca o material em direção ao movimento. Ambos os artistas produzem efeitos de expansão das formas, sempre utilizando uma economia de gestos e métodos. Além disso, os dois têm o lúdico como mote, isto é, há uma atmosfera de encantamento que sobrevoa suas obras. Essa característica advém da escolha de elementos que fazem parte do nosso cotidiano e não necessariamente estão associados, num primeiro momento, ao universo da arte.

Como escrevi há dois anos sobre o trabalho de Patrício[6], sua pesquisa se faz como a estrutura de uma obra aberta, pois seu pensamento plástico ou coerência na escolha dos jogos combinatórios e no uso das cores permite ao espectador uma experiência vertiginosa. Essa sensação de deixar as formas geométricas instáveis e de tornar vibráteis as unidades seriadas da composição ganha um contorno ainda mais complexo e sagaz quando uma espécie de díptico é formada, isto é, quando são apresentadas lado a lado, como nesta exposição, obras que adotam as mesmas peças e quantidades, mas têm sequências de ordenação das peças, pensando numa sucessão, invertidas: por exemplo, uma parte do centro e outra do perímetro que delimita a totalidade da obra. São os casos de 15.625 pregos crescentes (2010) e 15.625 pregos decrescentes (2010).

A sequência infindável na junção de pequenos objetos acentua que a repetição é promovedora da diferença. Eis a reprodutibilidade da arte e o seu caráter de uma propulsão multiplicadora. Percebam que essa ação “infinita” ultrapassa a moldura, pois deseja habitar o terreno imaginativo e especulativo do espectador para além do limite físico do suporte em que a obra se encontra. Suas criações associam uma severa destreza técnica, conservando o rigor construtivo, com a delicada gestualidade de pequenos objetos — comprados no comércio popular varejista e que, por outro lado, como acentuou o artista em conversa com o autor, são cada um deles um projeto de design único — que deságuam no ilusionismo óptico.

É interessante destacar essa figura do colecionador em Patrício: operando com objetos de pequeno valor, garimpados nos mais diferentes lugares, que, reunidos, compõem um painel diversificado e, ao mesmo tempo, repleto de semelhanças, se compararmos as cidades em que foram coletados. Notem que é cada vez mais raro achar armarinhos, pois a indústria têxtil, serializada e altamente competitiva, tem colocado em risco uma produção mais autoral e artesanal. Botões, em pouco tempo, se continuarmos nesse ritmo alucinante, serão artigos raros. Aliás, a artesania é uma característica que diferencia a prática artística de Patrício em relação a seus pares. Se qualificarmos a sua produção como pintura, o que é perfeitamente adequado, ela é feita não com tinta, mas com as mãos e a experiência de uma sensibilidade muito própria, além de compor um painel rico sobre a cultura brasileira ao expor materiais e experiências que fazem parte do cotidiano do brasileiro (dominó, jogo de dados, quebra-cabeça, botões e os grandes mercados varejistas do País ou os pequenos armazéns em que são vendidas essas peças). Há, portanto, nessas obras, a construção de um imaginário cultural e visual sobre o Brasil, um país que ainda mantém nos seus mais distantes rincões, assim como em seus centros urbanos, uma resistência aos padrões tecnológicos, ao manter viva a memória de um cotidiano lúdico e desacelerado. Eis um alargamento para a ideia e o lugar de invenção das linguagens construtivas no País.

Sua obra, portanto, é um constante acontecimento. Cabe ao espectador escolher se a sequência numérica está crescendo ou decrescendo e ainda em que ponto da obra se apreende essa velocidade e faz essa escolha. Estamos constantemente envolvidos por escolhas, formas e cores que induzem movimentos, traços, rumos e territórios. E é exatamente essa qualidade de caos que particularmente me anima. Experimentar o fato de que a razão também pode provocar novos caminhos e sentidos, muitas vezes não esperados, ainda mais se levando em conta que essa experiência parte (supostamente) de um dado concreto, matemático e assertivo.

 

Este texto foi originalmente escrito como apresentação do catálogo da exposição individual de José Patrício Precisão e Acaso, no Museu do Estado de Pernambuco, Recife, em agosto de 2017.

[1] “Originalmente, as peças apresentam os pontos côncavos pintados de preto. Depois que as peças se encontram fixadas no suporte de madeira, os pontos são pintados com esmalte sintético a partir da atribuição de cores para cada número, sempre a mesma: 1. branco; 2. laranja; 3. azul; 4. verde; 5. amarelo; 6. vermelho. Essa sequência de cores é padrão para a maior parte dos dominós que encontro no mercado e está presente em várias obras, seja com os dominós, seja com os pregos ou os alfinetes”. In: PATRÍCIO, José. Pintura. In: HERKENHOFF, Paulo. José Patrício: cogitações sobre o número. Rio de Janeiro: Cobogó, 2010, p. 114.

[2] HERKENHOFF, Paulo, op. cit., p. 46. Nessa passagem, Herkenhoff faz referência a dois autores. Quando menciona o chute como caos sem lei (Cf. Ylya Prigogine. Les Lois du Chaos. Paris: Flammarion, 1997) e o número em estado de irracionalidade (Cf. SMITH, Leonard. Chaos: a very short introduction. Cambridge: Oxford University Press, 2007, p. 87-103).

[3] Até o momento, foram produzidas 14 obras.

[4] PATRÍCIO, José. Imago mundi. In: HERKENHOFF, Paulo, op. cit., p. 108.

[5] MORAIS, Frederico. Abraham Palatnik: um pioneiro da arte tecnológica. In: Retrospectiva Abraham Palatnik: a trajetória de um artista inventor. São Paulo: Itaú Cultural, 1999. Reeditado em OSORIO, Luiz Camillo. Abraham Palatnik. São Paulo: Cosac Naify, 2004, p. 173.

[6] SCOVINO, Felipe. Imagens vertiginosas. In: PATRÍCIO, José. Avulsos. Rio de Janeiro: Galeria Nara Roesler, 2015. Disponível em: https://nararoesler.art/usr/documents/exhibitions/list_of_works_url/67/catalogo_jp_2015_gnrrio2015.pdf. Acesso em: 1º ago. 2017.