José Patrício, a “geometria do acaso”: espirais, infinitos e grades imperfeitas

“J’ai compris alors que leur origine (des lignes) ne se trouvait pas dans la géometrie – littéralement “la mesure de la terre”- d’Euclide, mais dans le fils de chaîne tendus du métier du tisseur.” (Tim Ingold)

O interesse de José Patrício pela chamada “cultura popular” não é algo recente e vai além de curiosidade, se define como uma pesquisa estética aprofundada. O artista é um colecionador de objetos e obras feitos por artistas autodidatas há muitos anos. Sua casa e seu ateliê são povoados de objetos como jogos, brinquedos, ex-votos, estatuetas e enfeites encontrados em feiras e mercados de rua quase sempre comprados diretamente das mãos desses autores, no Recife e outras cidades do Nordeste do Brasil, onde ele nasceu e vive. O Nordeste é reconhecidamente um território de intensa tradição artística e como artista-colecionador, Patrício sempre esteve atento às peculiaridades do fazer elementar da “arte popular” nas ruas e festas populares onde observam-se os detalhes, suas materialidades e a sabedoria que ela encarna.

Segundo seu depoimento dado em maio de 2023 por ocasião de sua exposição na galeria Nara Roesler Rio de Janeiro, o artista teve na observação das práticas culturais do Nordeste, sua formação inicial, uma vez que se sentia em certo isolamento em relação ao circuito formal de arte que se centralizava no Sudeste do país.

“Passei a investir em ver exposições, e a partir dos anos 1980 comecei a ir ao Rio e a São Paulo praticamente todos os anos, e via todas as exposições que estavam acontecendo, visitava as instituições, os museus, as galerias. Na época havia umas galerias da Prefeitura do Rio que mostravam muito os trabalhos dos artistas concretos e neoconcretos, e acredito que isso tenha tido alguma influência, mas sobretudo meu interesse no geométrico-construtivo veio muito da arte popular do Nordeste e principalmente em Pernambuco, onde vivo. Sempre me interessei e admirei as estruturas que você vê nas fachadas das casas, que se encontra nas pinturas das festas populares, nas barracas, nos bancos, tudo isso me chamava muito a atenção.”

Foi a partir de sua atenção voltada para os objetos populares e do cotidiano que Patrício foi escolhendo seus materiais e experimentando com elementos plásticos, peças de madeira e outros objetos encontrados no comércio, como quebra-cabeças, botões e dominós. Ele começou a utilizar os jogos de dominó em suas obras a partir de 1999, quando realizou Ars Combinatoria, no convento de São Francisco em João Pessoa, Paraíba, um marco em sua trajetória. Desde então, os dominós apresentaram numa possibilidade de serialidade e combinação com resultados pictóricos muito interessantes e uma infinidade de possibilidades de combinações, tendo o acaso como um elemento intrínseco a ele. Os procedimentos para a construção da composição a partir da grade, seguindo um movimento do centro para a borda, foram em seguida testados com diversos outros materiais, como botões, alfinetes, dados e fios coloridos, entre outros levando ao desenvolvimento uma linguagem formal própria.

A tradição construtiva da arte brasileira é expressa na obra de Patrício por meio da modulação e da serialidade. Tirando partido da superfície plana e quadrada, suas obras são construídas a partir de uma grade sobre a qual se organiza um grande conjunto de pequenos elementos escolhidos que se repetem sempre em uma evolução espiralada e com variações cromáticas que definem a composição final. Seus resultados são obtidos a partir da criação de um sistema que segue primeiro a escolha de organização das peças sobre a grade em seguida a montagem da obra no qual o acaso irá fatalmente incidir. José Patrício não utiliza projetos ou desenhos preparatórios, apenas “alguns cálculos matemáticos, mas não para todas as obras”, portanto, o resultado final da obra só é conhecido uma vez que o trabalho esteja totalmente montado.

Na maior parte das obras apresentadas nessa exposição, o elemento construtivo essencial é a peça de quebra-cabeça de plástico. Material empregado por ele desde o início dos anos 2000, as peças eram inicialmente utilizadas com suas estampas e desenhos originais que serviam para a composição de uma figura, uma vez que o quebra-cabeça estivesse montado. Em suas obras mais recentes, interessado em criar composições cromáticas mais abstratas, o artista passou a encomendar diretamente de um mesmo fabricante as peças em cores sólidas, em diferentes tonalidades de cinzas e destituídas de suas estampas tradicionais. A partir de então, utiliza o mesmo procedimento de montagem em espiral para criar diferentes composições recombinando as cores. Os possíveis arranjos de combinação tonal são explorados no maior número de possibilidades possíveis.

Na série Recipientes, as obras são compostas pelos versos das peças de quebra cabeça, onde o objeto tem uma cavidade, que originalmente serve a ser inserido tanto um signo visual como algum encaixe, tornando-se, portanto, uma espécie de recipiente. O artista preenche esses espaços vazios com tinta esmalte para criar outras combinações de cores e composições formais. Nas palavras de Patrício, esse trabalho configura uma espécie de “pintura expandida”, já que não segue os procedimentos da pintura tradicional sobre tela e utiliza objetos para definir a composição do quadro.

Nos postulados da Geometria do Acaso, Blaise Pascal, afirmava no século XVII, que podemos raciocinar, especular e fazer cálculos com o acaso. Uma vez o acaso sendo parte inerente da matemática, Pascal pôde atestar que o conhecimento parece nunca ser destituído de seu componente prático pois ele nunca é dado priori, é preciso construí-lo.

A prática artística de José Patrício me parece comprovar de certa forma essa afirmação de Pascal para as leis da natureza. O conhecimento nunca é dado a priori, ele sempre deve ser construído através da prática da busca pela verdade. Através da experimentação constante pode se chegar a um resultado matemático preciso, mas o acaso será uma inevitável parte do processo dessa busca e, portanto, elemento constituinte da verdade.

Este texto foi originalmente escrito em inglês como apresentação da exposição individual de José Patrício Geometria do acaso, na Galeria Nara Roesler, Nova Iorque, em setembro de 2023.

José Patrício, the "geometry of chance": spirals, infinities and imperfect grids.

“Then I understood that their origin (of lines) was not in the geometry – literally ‘the measure of the earth’ – of Euclid, but in the stretched warp threads of the weaver’s loom.” – Tim Ingold

José Patrício’s interest in so-called “popular culture” is not recent and goes beyond mere curiosity. Instead, it could be defined as profound aesthetic research. The artist has been a collector of objects and works made by self-taught artists for many years. His house and studio are filled with objects; games, toys, ex-votos, figurines, and decorations found at fairs and street markets, usually purchased directly from these creators in Recife and other cities in Northeastern Brazil, where he was born and still lives. The Northeast is recognized as a territory of intense artistic tradition, and as an artist-collector, Patrício has always been attentive to the peculiarities of the art found in the streets and at popular festivities. He observes the details, the materialities, and the wisdom embodied in this art.

According to his statement from May 2023, at his exhibition at the Nara Roesler Gallery in Rio de Janeiro, the artist’s initial training came from observing the cultural practices of the Northeast. He felt somewhat isolated from the formal art circuit centered in the Southeast of the country.

“I started to invest in seeing exhibitions, and from the 1980s, I began going to Rio and São Paulo almost every year, visiting all the ongoing exhibitions, institutions, museums, and galleries. At that time, there were some galleries in Rio’s City Hall that showcased the works of concrete and neo-concrete artists. I believe that had some influence, but above all, my interest in the geometric-constructive came mostly from popular art in the Northeast, especially in Pernambuco, where I live. I’ve always been interested in and admired the structures you see on the facades of houses, in the paintings of popular festivities, in the stalls, in the benches; all of that caught my attention.”

It was through his focus on popular objects and everyday life that Patrício chose his materials and experimented with plastic elements, wooden pieces and other found objects such as puzzles, buttons, and dominoes. He began using dominoes in his works in 1999 when he created “Ars Combinatoria” at the São Francisco Convent in João Pessoa, Paraíba, which marked a milestone in his practice. Since then, dominos have presented an opportunity for seriality and combination with interesting pictorial results and an infinite number of possibilities, with chance as an intrinsic element. The procedures for constructing the composition based on the grid, moving from the center to the edge, were later tested with various other materials, such as buttons, pins, dice and colored threads, leading to the development of his own formal language.

The constructive tradition of Brazilian art is expressed in Patrício’s work through modulation and seriality. Leveraging the flat and square surface, his works are built upon a grid upon which a large set of chosen small elements are organized, repeating in a spiraling evolution with chromatic variations that define the final composition. The results are achieved through the creation of a system that first chooses the organization of the pieces on the grid and then assembles the work, where chance inevitably plays a role. José Patrício does not use preparatory projects or drawings, only “some mathematical calculations, but not for all works.” Therefore, the final result of the artwork is only known once it is fully assembled.

In most of the works presented in this exhibition, the essential constructive element is the plastic puzzle piece. He has used this material since the early 2000s, initially employing its original patterns and designs to create a figure once the puzzle is completed. In his more recent works, with an interest in creating more abstract chromatic compositions, the artist began ordering puzzle pieces directly from the same manufacturer, now in solid colors and various shades of gray, devoid of their traditional patterns. From then on, he uses the same spiral assembly procedure to create different compositions by recombining the colors. The possible arrangements of tonal combinations are explored in as many ways as possible.

In the “Recipientes” series, the works are composed of the back sides of the plastic puzzle pieces, where the object has a cavity originally designed to insert a visual sign or some fitting, thus becoming a kind of container. The artist fills these empty spaces with enamel paint to create other color combinations and formal compositions. In Patrício’s words, this work represents a kind of “expanded painting,” as it does not follow the procedures of traditional painting on canvas and uses objects to define the composition of the picture.

In the principles of the Geometry of Chance, Blaise Pascal affirmed in the 17th century that we can reason, speculate and make calculations with chance. Since chance is an inherent part of mathematics, Pascal could attest that knowledge never seems to be devoid of its practical component because it is never given a precedent; it must be constructed.

José Patrício’s artistic practice seems to confirm Pascal’s assertion about the laws of nature to some extent. Knowledge is never given a precedent; it must always be constructed through the practice of seeking truth. Through constant experimentation, one can arrive at precise mathematical results, but chance will inevitably be a part of the process of this pursuit and, therefore, a constituent element of truth.

This text was originally presented on the occasion of José Patrício’s individual exhibition, Geometry of chance, at the Nara Roesler Gallery, New York in September 2023.