José Patrício oferece um exemplo interessante das respostas insólitas em que se manifesta a inclinação construtiva na arte do Brasil. Ele começou com composições geométricas de diferentes elementos seriados. Sua pesquisa com objetos obtidos da realidade levou-o às peças do dominó. Este jogo lhe ofereceu um material com possibilidades frutíferas que vem explorando há tempos em suas instalações.
O dominó é um passatempo bastante popular na América Latina, principalmente entre as camadas populares. O jogo possui um forte componente de acaso, mas jogá-lo a sério exige habilidade e memória. Traz como conseqüência a tensão interna de ser um jogo de sorte e ao mesmo tempo matemático; desta queda-de-braço procede o atrativo e o próprio desenvolvimento do jogo. Sua prática é quase sempre um evento social, em que participam mais observadores curiosos do que jogadores na mesa. Costuma ser praticado entre pessoas que se conhecem, num ambiente improvisado num quintal ou numa calçada, acompanhado do consumo de bebidas alcoólicas. O dominó é barulhento e barroco: os participantes falam, gritam, gesticulam, batem as pedras na mesa, riem…
O jogo se baseia em um desarranjo. Quando termina uma partida, as peças que tinham sido ordenadas são viradas para baixo e movidas sobre a mesa pelos jogadores até ficarem misturadas casualmente. A partir desta desordem arbitrária começa a nova partida. Deverá então ser ordenado novamente, de acordo com a conveniência de cada dupla de jogadores, com base nas peças que corresponderem a cada um por acaso.
As instalações de Patrício com os dominós têm um aspecto formal e construtivo e outro conceitual. Ele cria bonitas composições, insólitas e sugestivas, às vezes com efeitos óticos, valendo-se das configurações que são estabelecidas pelos pontos nas pedras, pelas diferentes cores e materiais das mesmas, e pela estrutura serial. O desdobramento realiza-se com as pedras soltas, que não são fixadas no piso nem em suporte algum. Porém, na mais pura tradição do concretismo, estas estruturas são determinadas por uma fórmula matemática fixa estabelecida previamente pelo artista, que norteia o ordenamento de todas as obras. A instalação muda em cada apresentação, devido a algumas escolhas formais que podem ser feitas pelas pessoas que montam a peça, mas a regra vai mais além deste elemento de acaso. Não importa quão diferentes fiquem visualmente, todas as instalações repetem a mesma fórmula.
Patrício cumpre ao pé da letra o discurso de Max Bill, mas ao mesmo tempo o contradiz ao realizá-lo com um elemento tão carregado de mundo como o dominó. O concretismo é assim seguido e negado ao mesmo tempo, mas o dominó também o é. Um jogo baseado no acaso e na desordem é submetido a uma ordenação estrita e repetitiva, que também nega o processo de reordenação fortuita mediante a qual se desenvolve o jogo. Ao organizar construtivamente suas peças, o artista desarranja em uníssono o concretismo e o dominó. Como nas instalações as peças ficam acomodadas mas soltas, as obras possuem uma grande precariedade que o espectador sente ao caminhar em volta: a batida descuidada de um sapato é suficiente para desmanchar tudo. O dominó conserva deste modo sua potencialidade de acaso, introduzindo uma tensão extra nas obras.
Os trabalhos de Patrício enfrentam a natureza de um jogo de sorte: não por desarranjar uma ordem existente, mas por provocar o desarranjo do acaso por meio do método. Expressam, por isso, uma ordem precária: parecem cosmos sob pressão, a ponto de explodir.
Este texto foi originalmente escrito como apresentação do trabalho de José Patrício para o Panorama da Arte Brasileira 2003 (Desarrumado) 19 Desarranjos, do Museu de Arte Moderna de São Paulo, em outubro de 2003.
José Patrício offers an interesting example of the novel and unusual ways Brazilian art reveals its constructivist tendencies. He began by making serial geometric compositions of different elements. His research with found objects led him to focus on dominoes, a material so full of possibilities that Patrício has been exploring it some time in his installations.
Dominoes are a very popular pastime in Latin America, especially among the working class. The game contains a strong element of chance but playing it demands skill and good memory. Thus it contains the inner tension of being both mathematical and a game of chance; this conflict provides its main attraction and even its development. It is most often played as a social event, where there are more curious standing spectators than players at the table. It is usually played by people who know each other well, in an improvised environment — in a yard or on a street —, accompanied by liquor. Dominoes are noisy and boisterous: the players talk, shout, gesticulate, bang the pieces on the table, laugh…
Dominoes are based on disarrangement. When a game is over, the pieces that have been put in order are turned over on the table and mixed at random. After this arbitrary disorder the new game starts. The dominoes must be ordered again according to each pair of players, and based on the specific tiles each one got by chance.
Patrício’s domino installations have a formal and constructive aspect, as well as a conceptual one. He creates beautiful, unusual and suggestive compositions with optical effects, making use of the configurations created by the dots on the tiles, by their different colours and materials and by their serial structure. They are displayed as loose pieces, neither fixed to the floor nor placed on any kind of support. However, in the purest tradition of concrete art, the structures are defined by a fixed mathematical formula previously established by the artist, who directs the arrangement of all his works. The installation changes at each show as a result of certain formal choices that can be made by those who install the piece, but the rule transcends this element of chance. No matter how different they appear visually, all installations repeat the same formula.
Patrício follows Max Bill’s discourse to the letter, but he simultaneously contradicts it by using an element as culturally loaded as dominoes. Thus concrete art is at once followed and negated, but so are dominoes. A game based on chance and disorder is submitted to a strict and repetitive ordering that also denies the process of fortuitous rearrangement intrinsic in its evolvement. By organising his tiles constructively the artist disarranges both concrete art and dominoes. Since the installation pieces are loose, the spectator feels their precariousness while walking around them; the careless touch of a shoe is enough to disassemble everything. As a result dominoes keep its element of chance, adding tension to the works.
Patrício’s piece challenge the nature of a game of chance: less for disarranging than for disarranging chance by method. They reveal, therefore, a frail order: they seem to be a cosmos under pressure, on the verge of exploding.
This text was originally written as a presentation of José Patrício’s work for the Panorama da Arte Brasileira 2003 (Desarrumado) 19 Desarranjos, Museu de Arte Moderna de São Paulo, in October 2003.