Sem risco de comer mosca

O artista contemporâneo que não despreza a história, que entende o fenômeno artístico como um campo cultural específico no interior de uma tradição, trabalha sob a pressão de fortes paradigmas. Ao contrário do que pensam certos críticos, as margens de intervenção poética se estreitam quando abre mão de realizar “qualquer coisa”. Seu desafio é manter ativo o caráter experimental da arte, necessário a toda investigação estética contemporânea, num momento histórico que parece ter esgotado a exploração do território plástico, sem apelar para outras esferas e seus temas, o que acaba, freqüentemente, rebaixando a pesquisa formal. O achado de José Patrício, com as peças do jogo de dominó, se inscreve claramente nessa área, na qual os obstáculos se multiplicam e se superpõem, e o artista alcança uma solução formal de rara dignidade.

Foi na sala Mestre Valentim, do Paço Imperial, no Rio de Janeiro, que vi a primeira instalação de dominós de José Patrício. Era um Bizâncio moderno, um mosaico policromático, sobre o fundo negro, que se estendia no solo: uma extensa superfície que parecia dilatar o sonho utópico de Seurat — descobrir um método capaz de abolir o sujeito da pintura. Com José Patrício, as sínteses cromáticas não se realizam por oposição, seguindo as regras descobertas por Chevreul e Hood, mas por contigüidade de extensas áreas bicromáticas, às quais vão se opor as diferentes cores. Antecede qualquer outra oposição, aquela que se impõe pela presença do fundo preto, dando a impressão de fazer flutuar ou recuar, em diferentes alturas, os diversos tons. O negro, como o invariante de toda a construção, determina o jogo de oposições. Enquanto o amarelo e o branco parecem se elevar sobre a superfície, o vermelho e o azul se retraem, recuam, formando uma renda moderna no imenso tapete. A alusão ao mosaico bizantino se dissolve na memória de uma cultura ibérica mais próxima e, no entanto, recalcada: os arabescos. São formidáveis arabescos contemporâneos esses tecidos modulares de José Patrício. O jogo ancestral do casamento numérico está suspenso para ceder lugar a uma experiência pictórica que não se realiza com tintas, pincel ou telas, e, sim, com os pequenos módulos de dominó. Aqui ninguém corre o risco de comer mosca. Nesse novo jogo, sempre é a vez do nosso olhar.

Quando portáteis, sobre as paredes, essas experiências podem não possuir o vigor das grandes instalações que necessitam extensas áreas. Temos diante de nós exercícios concentrados das múltiplas variantes que a experiência pode alcançar. Sua força plástica fica demonstrada nesses segmentos dos ensaios maiores. É a partir deles que podemos situar melhor o método e seus limites.

Com a série 112 Dominós é explorada, num novo prisma, a questão da reprodutibilidade da arte, as possibilidades de sua multiplicação. Um atalho para a compreensão dos procedimentos de José Patrício pode ser aquele que uso freqüentemente: o modelo da língua. Podemos associar os módulos básicos, não como as peças de dominó, módulos físicos, mas cada um dos pares de seqüências numéricas que formam cada peça, seus fonemas. Temos uma linguagem formada de seis fonemas, cujas palavras nunca admitem mais de dois fonemas, mais o zero ou vazio, o silêncio. Por isso mesmo, o artista já chamou o trabalho de Ars combinatoria. Morfemas exatos de um vocabulário restrito que será multiplicado em cada construção. Percebemos que cada obra individual já traz, embutidos, seus múltiplos. Corpo sem órgãos, tecido de células de uma pura epiderme plana, rígida nos seus componentes e, no entanto, de extrema mobilidade. O tradicional jogo de pedras pretas com pontos brancos traduze a base estrutural, na qual, quando são acrescentadas as cores, encontramos a performance da língua, sua fala. Essa variante plástica acrescenta uma nova dinâmica. Com esses recursos mínimos, as possibilidades das séries são infinitas, não havendo limites para sua multiplicação. Os indivíduos apresentados sobre as paredes tornam-se a demonstração virtual dessa possibilidade que só encontra limites espaciais quando investigada nas instalações.

Estamos num patamar diferente das questões colocadas pelo progresso da ciência e da técnica para a obra de arte. Não precisamos nos preocupar com as máquinas e suas tecnologias, sejam as mais simples, como a goiva e a madeira, ou as mais recentes, as digitais e seus processadores eletrônicos, para nos confrontarmos com um território estético, bem delimitado nas suas regras, que apresenta a auto-reprodução como um moto-contínuo de formas abstratas. Incorporado, como ponto de partida, o terreno da combinatória matemática, nos encontramos com a combinação das séries, reitero, infinitas nas suas possibilidades. O problema não é mais a reprodução do mesmo; trata-se, agora, de, a partir do mesmo, produzir infinitos outros.

José Patrício deixa evidente que, mesmo nesse mundo hipermoderno, não se encontram esgotadas as investigações estéticas que mantêm elevadas as preocupações formais.

Este texto foi originalmente escrito como apresentação da exposição individual de José Patrício “112 Dominós”, na Galeria Amparo 60, Recife, em setembro de 2002.

Without Risk of Going Astray

The contemporary artist who is aware of history, and understands the phenomenon of art as a specific cultural field within a tradition, works under the pressure of solid paradigms. Contrary to what certain critics think, the space for poetic intervention becomes narrower when it does not strive for the accomplishment of “something”. The challenge is to keep alive the experimental nature of art, necessary to all contemporary aesthetic investigation, at a point in history that seems to have exhausted plastic exploration, without appealing to other spheres and their themes, which, ultimately, can often debase formal research. José Patrício’s discovery, with domino pieces, is clearly in this area, in which obstacles proliferate and overlap, and the artist reaches a formal solution of rare dignity.

It was in the Mestre Valentim room of the Imperial Palace, in Rio de Janeiro, that I saw José Patrício’s first installation of dominos. It was a modern Byzantium, a multi-colored mosaic, on a black background, that spread over the ground: an extensive surface that seemed to dilate Seurat’s utopist dream – to discover a method of abolishing the subject of the painting. With José Patrício, the chromatic syntheses are not made by opposition, following the rules discovered by Chevreul and Hood, but by the adjacency of large two-colored areas in which the different colors oppose each other. Any other opposition is secondary to that imposed by the presence of the black background, which seems to make the various tones float or withdraw at different heights. It is black that determines the game of opposites, as the non-variant in the entire construction. While yellow and white seem to rise above the surface, the red and the blue shrink and withdraw, creating a modern lace in the immense carpet. The allusion to the Byzantine mosaic dissolves in the memory of a closer and, nonetheless suppressed, Iberian culture: arabesques. These modular fabrics of José Patrício’s are superb contemporary arabesques. The ancestral game of numerical matching is suspended to give way to a pictorial experience that is not produced by the use of paints, brush or canvases, but with small domino pieces. Here nobody runs the risk of going astray. In this new game our gaze always has priority.

These portable components, on the walls, do not possess the vigor of large installations that require a lot of space, and impress us differently. We have before us concentrated exercises in the multiple variants that the experience can bring. Tremendous plasticity is demonstrated in these segments of the bigger works. And it is based on them that we can best place the method and its limits.

A new prism is explored through the series 112 Dominós: the question of the reproducibility of art, the possibilities of its multiplication. One short-cut to an understanding of José Patrício’s steps is that which I often use: the model of language. We can associate the basic modules, not as domino pieces, the physical modules, but each one of the pairs of numerical sequences that form each work, its phonemes. We have a language consisting of six phonemes, the words of which never contain more than two phonemes, plus the zero or void, silence. For this very reason, the artist has already called the work Ars combinatoria; exact morphemes of a limited vocabulary that will be multiplied in each construction. We perceive that each individual work already holds its multiples. A body without organs, made up of cells of a pure smooth skin; rigid in its components but, nonetheless, of extreme mobility. The traditional game of black blocks with white dots translates the structural base, which when color is added, evolves to provide us with the ‘performance’ of the language: its speech. This visual variant adds a new dynamic. With these minimal resources, the possibilities of the series are infinite, there being no limits for their multiplication. The individuals presented on the walls become the virtual demonstration of this possibility that only finds spatial limits when investigated in the installations.

We are on a different level from the issues posed by the advances of science and artistic technique. We do not need to be concerned with machinery and its technology, be it the most simple, such as the chisel and wood, or the most recent, the digitals and their electronic processors, to be confronted by an aesthetic territory, very tightly ruled, that presents self-reproduction as a perpetual motor for abstract forms. Incorporating the realm of mathematical combination as a starting point, we find ourselves with the combination of the series, which are – I repeat – infinite in their possibilities. The problem is no longer the reproduction of the same, but now to produce infinity of others from just one: a domino game.

José Patrício leaves it clear that, even in this hypermodern world, aesthetic investigations that keep formal concerns raised are by no means exhausted.

This text was originally written as a presentation of José Patrício’s solo exhibition, 112 Dominoes, held at Galeria Amparo 60, Recife, in September 2002.

O olhar em queda livre

Se olharmos para a gravura digital que José Patrício realizou para os Museus Castro Maya, no Rio de Janeiro, ao lado de trabalhos da série Afinidades cromáticas, verificamos que na gravura está presente o alicerce sobre o qual se constrói a série. Trata-se de um túnel quadrado rigorosamente geométrico e perspectivado pelo efeito cromático das variações dos tons de cinza, que vão do branco ao preto, ou, se quiserem, dos limites externos pretos ao centro branco, não por acaso, intitulado Vertigo. O título da gravura que remete à lembrança de uma das obras primas do mestre Hitchcock tem suas consequências. Mesmo sobre a parede, por associação provocada pelo título, é como se estivéssemos olhando-a de cima para baixo, o olhar cai em queda livre dos limites externos até o centro. A decisão de expor essa estrutura vai refletir no modo como olhamos a série. Veremos por trás de cada uma das Afinidades cromáticas essa estrutura vertiginosa, mesmo que atenuada pelo jogo das cores dos botões que constituem sua superfície. O olhar encarnado de cada um de nós, diante da arte, é “um corpo que cai”.

Mas se nos detivermos nas Afinidades cromáticas somos levados à memória do jogo numérico de trabalhos anteriores de José Patrício com os dominós. Aqui o protagonista do jogo é mais prosaico e lidamos com ele todos os dias: o botão. Os botões são vários nos tamanhos e nas cores, mas nunca grandes demais, são comuns. Todo botão espera uma casa para cumprir sua função: abotoar, manter presas duas superfícies de tecido. Mas aqui sua utilidade está banida. Costurados na superfície com regularidade geométrica constituem uma multidão aprisionada, cada indivíduo em seu lugar, para se transformarem em superfície de uma obra de arte. O resultado é evidente, estão presos para nos prender, nos deter na trama vertiginosa de suas sutis variações de forma e cor. Na sua banalidade de coisa comum, juntos se erguem e se emancipam na “coisa” arte.

Este texto foi originalmente escrito como apresentação da exposição individual de José Patrício Afinidades Cromáticas – Os amigos da Gravura, no Museu da Chácara do Céu, Rio de Janeiro, em dezembro de 2013.

The free fall look

If we look at the digital engraving that José Patrício produced for the Castro Maya Museums, in Rio de Janeiro, alongside works from his Afinidades cromáticas (Chromatic affinities) series, we can see that this engraving contains the basis upon which the series was built. It is a rigorously geometric square tunnel, put in perspective by the chromatic effect of dégradé tones of grey, ranging from white to black, or, if you prefer, from the black outer limits to the white centre: not by chance, entitled Vertigo. The title of the print, which brings to mind one of Hitchcock’s masterpieces, has its consequences. Even on the wall, via association through the title, it is as if we were looking at it from top to bottom: the gaze drops in free fall from the outer edges to the centre. The decision to expose this structure will reflect on the way we look at the series. We will see behind each of the Chromatic Affinities components this vertiginous structure, albeit attenuated by the play of colours of the buttons composing its surface. The embodied look of each one of us, before this piece of art, is ‘a body that falls’.

But if we dwell on Chromatic Affinities, we are drawn to the memory of the numerical game of José Patrício’s previous works with dominoes. Here the game’s protagonist is more prosaic and one we deal with on a daily basis: the button. These buttons differ in size and colour, but are never too big; they are ordinary. Every button awaits a buttonhole to fulfill its function: to button up, to keep joined two surfaces of fabric. But here their usefulness is banned. Stitched to the surface with geometric regularity, they constitute an imprisoned crowd, each in its place, to form the surface of a work of art. The result is evident, they are trapped to capture us, detain us in the vertiginous plot of their subtle variations in shape and colour. In their banality as a commonplace object or thing, together they rise and emancipate themselves in the art ‘thing’.

This text was originally presented in Portuguese on the occasion of José Patrício’s individual exhibition Afinidades Cromáticas – Os amigos da Gravura, at the Museu da Chacára do Céu, Rio de Janeiro in December 2013.